Este humilde escriba não tem
tempo para fazer um mapeamento completo para dizer onde e quando começou o
verso livre. Mas dá para citar alguns autores pioneiros. Um deles é William
Blake. Seu Casamento do Céu & inferno
tem um amálgama de técnicas: a prosa de feição bíblica, aforismos, e alguns poemas
em verso livre. Um livro escrito em 1790! Ler Blake é uma vertigem, é um
prazer, é abrir as portas da percepção (quase cliché usar essa referência!). Basta
dizer que influenciou Huxley & os Beats. Mais que isso: continua atual.
Muito poeta contemporâneo precisa de umas vacinas de Blake (não só para gripe e
caxumba).
Outro é Whitman. Oriundo de um
país jovem (à época), o autor de Leaves
of Grass usou somente o verso livre, de larga extensão (num flerte com a
escrita sálmica). Seus temas iam contra o conservadorismo norte-americano. Amor & sexo sem culpa, homossexualidade,
masturbação. A linguagem era fluida & sem enfeites. Sua persona idealizava
uma América livre (quiçá um tanto idealizada). Como diria Borges, ele era um
Adão vendo o mundo pela primeira vez. Além disso, queria se libertar da
influência dos ingleses e franceses. O filósofo Emerson entendeu Whitman. Oscar
Wilde também. O resto do mundo praticamente o ignorou. A primeira edição das Folhas de Relva é de 1855. Livro que ele
foi ampliando ao longo de sua vida.
Na França o verso livre começou a
se prenunciar na prosa. A descoberta do verso livre ainda demorou um pouco, mas
foi se solidificando nos experimentos em prosa: podemos citar Aurélia de Gerard de Nerval. É um relato
sobre a “loucura-lúcida” que o poeta foi acometido no fim de sua vida. Apesar
da feição “prosaica”, é um livro ornado com muito lirismo. Aurélia foi escrito em 1853.
Baudelaire também queria sair das
amarras do verso metrificado e nos brindou com Pequenos Poemas em Prosa, um livro póstumo de extrema qualidade e potencial
poético. Sem perder sua veia sarcástica, crítica e, por vezes escatológica.
Fundamental!
Mas a coisa pega fogo mesmo com
Rimbaud e Lautréamont: este último com seus Cantos
de Maldoror foi uma das figuras mais atordoantes da literatura: as imagens insólitas (que viriam a
influenciar os Surrealistas), a violência da narrativa. Um escrito ansiando
pelo novo, mandando para longe os Parnasianos; muitas vezes chegando ao bizarro,
levando ao extremo as fealdades líricas de Baudelaire. Há trechos que grande
força poética & outros que dão um choque no leitor (principalmente aquele
acostumado com uma lírica tradicional). O leitor fica de cabelos em pé e vai
logo procurar um Rivotril com as mãos trêmulas. Leitura fundamental para que
quer entender o que veio depois. Nos Cantos,
já se prenunciava o verso livre. Mas
ainda era algo por vir. Foram
escritos em 1868!
Finalmente chegamos a Rimbaud!
Arthur Rimbaud escreveu sua obra dos
15 aos 20 anos. Escusado dizer que é um dos mais importantes poetas de todos os
tempos. O autor de “Barco Ébrio” me faz lembrar algo que Roberto Piva falou
certa vez: “Para se tornar um poeta experimental, é necessário ter uma vida
experimental”. Não vou relatar as aventuras desse jovem poeta que em tão pouco
tempo, conseguiu escrever tantos textos imortais. A citação de Piva é o
suficiente para descrever o que era Rimbaud.
RIMBAUD EM VERSO METRIFICADO:
Vários são os poemas exemplares
dessa fase. Primeiramente, cito aqueles de beleza lírica mais comportada: “Adormecido
no Vale”, “Armário”, “Canção da Torre Mais Alta”, o inigualável “Barco Ébrio”!
Rimbaud também versou de forma prosaica & muitas vezes usando fealdades
exemplares e louváveis (era discípulo de Baudelaire): “Os Sentados”, “Venus
Anadiômena”, “Minha Bohemia”, “No Cabaré Verde”, “Os Poetas de Sete Anos”. São
esses que lembro agora. Mas outros vários exemplos.
RIMBAUD EM PROSA:
A Temporada no Inferno foi único livro que
Arthur Rimbaud organizou e publicou em vida. A Sua prosa é de uma força nunca
antes vista na literatura francesa. Na época, 1873, o livro não causou efeito.
Rimbaud não conheceu Lautréamont (seu contemporâneo), mas estava no mesmo caminho:
libertar-se da métrica, buscar o novo. Provavelmente suas vivências/aventuras
foram o mote para este testemunho poético de alta voltagem. Lembro-me de ter
lido na introdução do Uivo (de
Ginsberg), feita pelo tradutor, Claudio Willer, que cada parágrafo do Uivo poderia ser considerado como um
pequeno poema dentro de uma estrutura maior. Assim penso no Rimbaud da Temporada
no Inferno. Dentro daquele caudal de prosa & colagens (Eliot soube chupar
essa técnica), podemos ler alguns trechos como pequenos poemas. Há poemas em
verso dentro da Temporada, mas os
trechos em prosa são os mais relevantes e experimentais. Rimbaud estava quase
descobrindo o verso livre. Isso há quase 150 anos!!! Na verdade o verso livre
foi aparecer no seu projeto posterior, Iluminuras.
Diz
a lenda que ele deixou os manuscritos das Iluminuras
com Verlaine para uma possível publicação. Esse ato marca sua aposentadoria da
poesia. Mais adiante pretendo fazer um post sobre as Iluminuras, texto tão importante quando a Temporada.
Bom, eu vou mostrar um pouco da
minha teoria de pequenos poemas estruturados no texto maior que é a Temporada. Tomei a liberdade de transformar alguns
trechos do livro em poemas independentes. Com ajuda de um estilete, fui cortando
os períodos, parágrafos e montei alguns textos como se Rimbaud tivesse usado o
verso livre. Vali-me para tal “aventura” de uma edição da Temporada disponível no site Domínio Público. Infelizmente não há referência
do autor da tradução. Mas cotejei com as traduções que possuo (Ledo Ivo &
Paulo Hecker Filho) e o texto que usei é bem fiel.
Não tive pretensão de reelaborar
uma obra que jamais precisaria de retoques. É só um experimento; uma forma
diferente de ler nosso querido poeta. Vale como experiência. E também como
forma de cativar mais leitores para a obra desse sensacional vate- vidente.
POEMAS EXTRAÍDOS DE UMA TEMPORADA NO INFERNO (RIMBAUD):
***
Os Gauleses foram esfoladores de animais,
Queimadores de ervas,
Os mais inábeis de seu tempo.
Deles, eu herdo a idolatria e o amor ao sacrilégio!
Oh! Todos os vícios: cólera, luxúria,
Magnífica, a luxúria!
Sobretudo mentira e preguiça.
Detesto todas as profissões.
Mestres e oficiais,
Todos são campônios, ignaros.
A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado.
Que século de mãos!
Jamais me servirei das mãos!
Depois, a domesticidade leva demasiado longe.
A honradez da mendicidade me exaspera.
Os criminosos repugnam-me como castrados:
Quanto a mim, estou intacto, e tanto faz.
***
Mas quem fez tão pérfida a minha língua
Que, até agora, tem guiado e protegido a minha preguiça?
Sem saber utilizar-me do corpo,
E mais ocioso que um sapo,
Tenho vivido por toda a parte.
***
Se eu possuísse antecedentes
Em um ponto qualquer da história de França!
Mas não, nada.
Não ignoro que fui sempre de raça inferior.
Não posso compreender a revolta.
Minha raça só se rebela para saquear:
Como os lobos ao animal que não mataram.
***
Retorna o sangue pagão!
O Espírito está próximo;
Por que Cristo não me ajuda,
Dando à minha alma
Nobreza e liberdade?
Ai, o Evangelho morreu.
O Evangelho! O Evangelho.
Espero Deus avidamente.
Sou de raça inferior
Por toda a eternidade.
***
Estou na praia armoricana.
Que as cidades se iluminem à noite.
Minha jornada está realizada;
Abandono a Europa.
A aragem marinha queimar-me-á os pulmões;
Os climas perdidos tostar-me-ão.
Nadar, mordiscar ervas, caçar, fumar, sobretudo;
Beber licores fortes como chumbo derretido
Qual faziam esses queridos antepassados
Em volta do fogo
Retornarei com membros de aço,
Negra a epiderme, as pupilas acesas:
Por minha máscara julgar-me-ão de um raça forte.
Possuirei ouro: serei ocioso e brutal.
As mulheres cuidam destes ferozes enfermos
Que regressam dos países quentes.
Participarei dos negócios políticos. Salvo.
Por ora estou amaldiçoado,
Horroriza-me a pátria.
O melhor é um sono,
Completamente bêbado, na praia.
***
A derradeira inocência e a derradeira timidez.
Está dito.
Não entregar ao mundo meus desgostos e minhas traições.
Vamos! A marcha, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera.
A quem me alugar?
Que besta é preciso adorar?
Que santa imagem atacar?
Que corações destruirei?
Que mentira devo sustentar?
Sobre que sangue caminhar?
Mas, é melhor evitar a justiça,
A vida dura, o simples embrutecimento
Levantar, o punho seco,
A tampa do caixão, sentar- Se, afogar.
Assim desaparecem a velhice e os perigos:
O terror não é francês.
***
Ah! Sinto-me tão abandonado
Que ofereço a qualquer divina imagem
Impulsos para a perfeição.
Ó minha abnegação,
Ó maravilhosa caridade!
Aqui em baixo, embora!
De profundis, Domine,
Que estúpido sou!
***
Nas estradas, nas noites de inverno,
Sem teto, sem roupa, sem pão,
Uma voz oprimia meu coração gelado:
“Fraqueza ou força: repara, é a força.
Não sabes para onde vais, nem porque vais,
Entra por toda a parte, responde a tudo.
Não lograrão matar-te
A menos que já sejas um cadáver".
Pela manhã tinha o olhar tão perdido
E o aspecto tão morto,
Que aqueles que me encontravam
Possivelmente não me viam.
***
Via-me diante de uma multidão exasperada,
Em frente ao pelotão de fuzilamento,
Chorando a desgraça
De que não houvessem podido compreender,
E perdoando!
– Como Joana d'Arc:
“Sacerdotes, professores, mestres,
Vós vos enganais entregando-me à Justiça.
Jamais pertenci a este povo daqui de baixo;
Jamais fui cristão;
Eu pertenço à raça que cantava no suplício;
Não compreendo as leis;
Não tenho senso moral;
Sou um bruto: vós vos enganais".
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAdorei o post! Que ideia ótima a do blog! Um texto despojado, objetivo e muito elucidativo. Coisa de quem realmente entende de poesia. Parabéns, querido! E viva Rimbaud!
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